A repórter pergunta, o
ministro gagueja.
Por
Luiz Cláudio Cunha
A mulher serena na frente
do homem inquieto.
A repórter experiente perante a autoridade calejada.
A
entrevistadora firme ante o ministro gelatinoso.
A profissional de imprensa
olho no olho com sua fonte.
Uma brasileira, presa e torturada na ditadura,
frente a frente com o ministro da Defesa que hoje comanda o Exército que ontem,
na ditadura, prendeu e torturou a mulher, a repórter, a jornalista, a
brasileira que o questionava (leia abaixo o depoimento inédito de Míriam Leitão
sobre as torturas que sofreu).
Esse dramático confronto
de 22 minutos brilhou na tela da TV numa noite de quinta-feira, no final de
junho passado, quando a jornalista Míriam Leitão, 61 anos, fez para a GloboNews
uma notável entrevista com o ministro da Defesa, Celso Amorim, 72 anos.
Viu-se
então uma aula prática do melhor jornalismo, confrontando a convicção com a
dúvida, a energia com a tibieza, o categórico com o evasivo, a verdade com a
mentira.
A repórter se agigantando num diálogo em que o ministro se apequenava,
acuado, hesitante, gaguejante.
Míriam fez o que o resto
da grande imprensa, acomodada e preguiçosa, não fez.
Foi a Brasília ouvir o
chefe civil dos militares, apenas nove dias após a entrega à Comissão Nacional
da Verdade (CNV) de uma insossa, imprestável sindicância de quatro meses realizada
pelos três comandantes das Forças Armadas (FFAA).
Diante de questões objetivas
com nomes, datas e locais de mortes e torturas apontadas pela CNV, os chefes da
tropa responderam, num catatau de 455 páginas, que não registravam nenhum
“desvio de finalidade” em sete centros militares do Exército, Marinha e
Aeronáutica onde foram meticulosamente documentados casos de graves violações
aos direitos humanos pelo regime militar de 1964-1985.
Os oficiais-generais das
três Armas simplesmente negaram a ocorrência de abusos até mesmo nos sangrentos
DOI-CODI da Rua Tutoia, em São Paulo, e da Rua Barão de Mesquita, no Rio de
Janeiro, onde a CNV já constatou pelo menos 81 mortes por tortura.
Os
comandantes esqueceram até dos 22 dias de suplício no DOI-CODI paulistano a que
sobreviveu em 1970 uma guerrilheira chamada Dilma Rousseff, hoje casualmente
presidente da República e, como tal, comandante-suprema dos generais que omitem
a crua verdade sobre a ditadura das FFAA (ver “Quem mente? A presidente ou os
generais?“).
Semblante sério, como
recomendava o tema e exigia o embate, a jornalista entrou de sola na
entrevista:
Míriam – Ministro, os
militares disseram que não houve desvio de função, mas a resposta causou
perplexidade…
Amorim – […] A CNV não
perguntou se as pessoas foram torturadas.
Ela focaliza muito na destinação dos
imóveis.
Com esta pergunta, a resposta também sinaliza uma resposta formal.
Não
houve, não há registro formal de desvio de funcionalidade…
Míriam– A CNV fez as
perguntas erradas?
Amorim – Ela não fez as
perguntas que ela não precisava fazer […]
As FFAA não negam, nem comentam. Elas
não contestam.
Elas simplesmente não entram [no assunto].
Se um
estabelecimento, militar ou outro qualquer, é usado para tortura, isso não é um
ilícito administrativo.
Isso é um crime […] Especificamente sobre as torturas,
ela [CNV] não faz nenhuma pergunta, ela afirma.
E as afirmações [da CNV] não
são contestadas.
Míriam– Uma coisa é o
DOI-CODI prender. Outra coisa é matar o preso.
Amorim – Isso é horrível.
Não é um desvio de finalidade, é um crime. […]
Se você disser que as respostas
são formais, eu concordo.
Até acho que elas são formais.
Elas não são
mentirosas, nem descumprem formalmente o que foi perguntado. Elas decepcionam
quem…
Míriam – … elas omitem a
questão principal, ministro.
As pessoas foram mortas dentro de instalações
militares, foram torturadas, e não foi para isso que se criaram essas
instalações.
Elas existem para defender o Brasil, não para torturar e matar
brasileiros.
Amorim – Não há a menor
dúvida. Tortura e morte é errado em qualquer lugar. Eu acho isso e a sociedade
brasileira acha isso…
Míriam– Mas os seus
comandados não acham.
Como ministro da Defesa, o sr. é o comandante dos
comandantes militares.
O sr. não deveria levá-los a tomar uma decisão sobre
isso?
O que eles fizeram nessa sindicância foi tergiversar sobre a questão
fundamental que se pergunta…
Amorim – Nós estamos
completando uma transição, a última etapa da transição é o relatório da CNV.
A
CNV vai produzir um relatório final e todos terão que se posicionar diante
dele.
Quanto às respostas em si à CNV, elas atendem ao que foi perguntado
formalmente.
Não houve nenhuma pergunta, tipo “o sr. confirma que houve tortura
e morte?”.
Até porque eu sei que a resposta aí seria:
“Todos os documentos da
época [da ditadura] foram destruídos”.
Míriam– É o que eles
dizem, aliás.
Amorim – Não houve nenhum
esforço, nenhuma pretensão de negar os fatos…
Míriam– O jornalista
Zuenir Ventura escreveu que, se [tortura e morte]não era desvio de função,
então era norma. O que o sr. diz dessa conclusão?
Amorim – Acho que tortura
e assassinato de uma pessoa indefesa é algo indefensável. Se isso era norma
explícita, eu não… eu creio que não.
Mas, implícita, talvez fosse.
Infelizmente, era um governo ditatorial.
Ninguém vai discutir isso.
Você sabe
muito bem: eu deixei meu cargo na Embrafilme porque autorizei a elaboração de
um filme pago pela empresa em que a OBAN era o tema central.
Arte do convencimento
Amorim, sempre diplomata,
não esclareceu bem aos telespectadores esse episódio que o dignifica e está
relacionado à OBAN, a Operação Bandeirante, a repressão unificada em São Paulo
que antecedeu em 1969 o DOI-CODI criado no ano seguinte.
Ele não “deixou” o
cargo, ele foi exonerado em abril de 1982 da presidência da Embrafilme, a
estatal de cinema da ditadura, por pressão dos generais do governo Figueiredo,
irritados com o temerário financiamento que a empresa concedeu ao cineasta
Roberto Farias para produzir Pra Frente, Brasil.
Era um filme de 105 minutos,
estrelado por Reginaldo Faria, Natália do Valle e Antônio Fagundes retratando
de forma contundente, pela primeira vez no cinema, os horrores da repressão sem
limites.
Os personagens eram calcados nos algozes da OBAN, no delegado do DOPS
Sérgio Fleury e nos empresários que financiavam a tortura do regime.
O ator
Carlos Zara interpretou o sádico “Dr. Barreto”, o policial inspirado em Fleury,
que havia torturado seu irmão, Ricardo Zaratini, um dos presos políticos
trocados pelo embaixador americano Burke Elbrick em 1969.
O ator Paulo Porto
encarnou o personagem inspirado no industrial Henning Boilesen que – como caixa
da OBAN no meio empresarial e amigo do poderoso ministro Delfim Netto – foi
executado por guerrilheiros em abril de 1971.
Lançado em 1982, Pra Frente,
Brasil ganhou cinco prêmios em festivais internacionais e, após uma arrojada
exibição em Gramado, RS, conquistou o troféu de melhor filme do festival de cinema
mais importante do país.
Em seguida, foi censurado e retirado das salas de
exibição.
Só voltou a ser mostrado no início de 1983, liberado sem cortes.
Hoje comandante dos
militares que no passado o expurgaram do serviço público, Celso Amorim agora
tem bons motivos para medir a diferença no calendário.
Amorim – O Brasil precisa
das FFAA.
E os militares de hoje não são os militares de ontem.
Nós precisamos
dialogar com estes militares de hoje.
Eles tem que saber separar o que foi o
passado e o que é hoje.
O 31 de março já não é mais comemorado…
Míriam– Mas eles mesmos
não fazem esta separação, quando não admitem os erros do passado.
Até para
preservar a instituição [das FFAA], eles não deveriam fazer esta separação?
Amorim – Você quer minha
opinião pessoal?
Acho que devem [fazer a separação].
Mas, isso não se faz com
uma ordem.
Isso é uma mudança cultural. Porque, as ordens eles podem até
obedecer.
Isso é uma mudança cultural que vem aos poucos.
Essa ordem depende do
diálogo.
Há outras concepções culturais das corporações.
Como isso se concilia,
é uma coisa complicada.
Não vou entrar aqui numa discussão filosófica sobre
culpas coletivas, ou culpas intergeracionais.
O tempo vai fazer com que isso
ocorra.
O primeiro passo é eliminar as coisas oficiais, como as comemorações do
31 de março. Nunca ouvi de nenhum militar, pelo menos comigo, nunca ouvi nenhum
defender a tortura, sob nenhum aspecto.
Nenhum veio aqui e disse: “Ah, mas
naquele caso tivemos que fazer isso…”. Nenhum. Nunca ouvi. Nem direta, nem indiretamente.
Míriam– E nem condenaram,
também…
Amorim fecha os olhos,
suspira, e não diz nada.
É salvo pelo intervalo do programa de entrevista, aos
13’33’’.
Na segunda parte, Amorim volta falando das coisas positivas que vê
hoje na área militar.
Amorim – […] Como a
criação do Estado Maior Conjunto das FFAA, subordinado diretamente ao
Ministério da Defesa.
Ou seja, o Ministro está na cadeia de comando, inclusive
das operações militares. E temos um secretário-geral civil, no mesmo nível dos
comandantes.
Incluímos disciplinas de direitos humanos em todas as escolas
militares.
Os livros [das escolas militares] devem ser aprovados pelo MEC e
fazem parte do currículo. Os colégios militares são excelentes. Você poderia me
perguntar:
“Mas, o sr. não pode dar uma ordem?”
Posso, mas eu prefiro
convencer.
O convencimento tem mais durabilidade.
Aprendi isso com a
diplomacia.
Acho que o convencimento é melhor do que uma ordem estrita.
Míriam – Em algum momento
as FFAA vão se deixar convencer a pedir desculpas ao País pelos crimes
cometidos na ditadura, para que eles não se repitam?
Amorim – Esta é uma
questão complicada.
Eu não sei… Acho que… talvez, talvez. Eu esperaria…
Acho
que o grande input para isso seria o próprio relatório da CNV, o tratamento que
ele vai ter e como será recebido pela sociedade.
Agora, você tem um conflito
entre duas concepções.
Uma, as FFAA de hoje pedindo desculpas pelo que não foi
feito por elas?
Não sei… Eu, como ministro das Relações Exteriores, se formos
pedir desculpas por tudo que tenha sido feito pelo Itamaraty, inclusive no
tempo da ditadura, talvez fosse complicado para mim…
Acho melhor ir mudando,
mudando a prática, e deixando aquilo que se deve ver e analisar para o
Judiciário, o Congresso, a sociedade…
Mas, não sei… Talvez fosse bom para eles
[os militares]. Eu acho…
Gaguejando, vacilando,
traindo suas dúvidas internas, Amorim revelou na GloboNews as incertezas
existenciais que são antigas e comuns entre os sete homens que ocuparam o
Ministério da Defesa desde sua criação, em junho de 1999, pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Nascida 14 anos após a queda da ditadura, a pasta
reproduzia a experiência de nações mais avançadas nos padrões democráticos.
É a
realização administrativa da constatação feita por um médico francês do século
passado, Georges Clemenceau (1841-1929), o primeiro-ministro da França nos anos
turbulentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que diagnosticou:
“A guerra
é uma coisa demasiadamente grave para ser confiada aos militares”.
Para
expurgar a arrogância natural de 21 anos de regime de exceção no Brasil, onde a
voz da caserna com frequência se confundia com os rugidos mais assustadores da
caverna autoritária, um Ministério da Defesa ocupado por um civil tinha, como
primeira vantagem, tirar o intocado status ministerial das Forças Armadas
habituadas ao cachimbo torto da hegemonia sobre a República e do arbítrio sobre
todos.
Gritos e sussurros
Rebaixando os ministros
militares ao nível de comandantes, sob o tacão de um civil na Defesa, o país
imaginava se vacinar contra recidivas no delicado processo da regeneração
democrática.
O problema é que, em vez de Ministro da Defesa do Estado, cada um
dos ocupantes do posto assumiu o equivocado papel de ministro da defesa dos
comandantes militares.
Desde o primeiro e mais fugaz, Élcio Alvarez, que durou
meros sete meses no cargo, até o mais longevo, Nelson Jobim, que Lula legou a
Dilma e sobreviveu no posto por longos 50 meses.
Mais do que encarnar o papel
de comandante civil do governo sobre os escalões militares, os ministros
acabaram vestindo a farda de porta-vozes dos quartéis e seus chefes, tornando
mais difícil o pleno reconhecimento das diferenças cruciais que existem entre
os Exércitos da ditadura e da democracia – e que nem os comandantes sabem
separar, como reconheceu Amorim para Míriam.
O atual ministro da
Defesa, profissional do Itamaraty desde 1989, quando o país teve sua primeira
eleição direta para presidente em três décadas, levou para o cargo as manhas da
diplomacia, esquecido de que o tom acatado nos quartéis é a ordem gritada e peremptória,
não o sussurro do lerdo convencimento ciciado nas missões diplomáticas.
O que
Amorim aprendeu com as luvas de pelica nos salões atapetados do Itamaraty não
combina com os coturnos empoeirados dos campos de manobra dos generais. São
áreas diferentes, são mundos separados.
O ministro da Defesa, com ingenuidade,
confessou na GloboNews que é um chefe que abdica de suas atribuições: em vez de
mandar, como se faz e se espera na caserna, prefere convencer, como nem os
diplomatas às vezes conseguem.
Militar, desde a academia,
sabe que o ofício do soldado é obedecer, assim como a missão do comandante é
comandar.
O diplomata Amorim, com a muleta da “durabilidade”, prefere
convencer.
Nas praias da Normandia, nas areias de El Alamein, nas colinas de
Waterloo, nas alturas de Monte Castelo, no estreito das Termópilas, no mar
revolto de Midway, onde ecoaram algumas das batalhas épicas que todo oficial de
Estado-Maior estuda nas aulas de tática e estratégia em combate na academia, os
militares não esperavam ser convencidos para cumprir sua missão, para comandar
e obedecer, para matar ou morrer.
Se fossem esperar pelo moroso convencimento
proposto por Amorim, os generais teriam perdido a batalha, a guerra, a vida e
talvez a honra.
O general francês Charles
De Gaulle (1890-1970), que não convencia mas sabia mandar, tinha esta áspera
opinião sobre os colegas de carreira de Amorim:
“Diplomatas são úteis apenas
sob bom tempo. Assim que chove eles se afogam em cada gota”.
O parlamentar
inglês Henry Wotton (1568-1639), embora embaixador, era ainda mais cínico:
“O
diplomata é um cavalheiro honesto enviado ao exterior para mentir pelo bem de
seu país”.
Agente da borrasca
Como o cavalheiro honesto
que é, Amorim poderia dizer a verdade pelo bem do país começando por um único
pedido de desculpas, na condição de ex-ministro das Relações Exteriores, por
uma grave truculência cometida por seus polidos pares de diplomacia exatamente
no tempo da ditadura: o Centro de Informações do Exterior (CIEx), o serviço
secreto criado dentro do Itamaraty, no primeiro governo da ditadura, o do
general Castelo Branco.
Foi obra e engenho de um diplomata sempre útil e que
sorvia cada gota da borrasca, Manoel Pio Correa Júnior (1918-2013), um
anticomunista ferrenho que se notabilizou pela caça aos comunistas na carreira
diplomática e pelo combate aos “vagabundos, bêbados e pederastas” que encontrou
pelo caminho.
Uma de suas vítimas mais notáveis foi o diplomata e compositor
Vinícius de Moraes, cassado pelo AI-5.
O poetinha brincava com os amigos: “Ei,
eu sou o bêbado, viu?”.
Capitão R/2 da Cavalaria,
o sóbrio Pio Correa vestia sobre o terno de diplomata a capa de agente da CIA,
servindo na estação do Rio de Janeiro da agência de inteligência
norte-americana, conforme revelou o ex-agente Phillip Agee na página 384 de seu
livro de memórias, Por Dentro da Companhia (Edição Círculo do Livro, 1976).
Ali, para constrangimento de Amorim e qualquer cavalheiro honesto, o homem da
CIA no Uruguai relatou, no diário de Montevidéu datado de 17 de junho de 1964,
menos de três meses após o golpe no Brasil:
[…] a base do Rio [da CIA]
decidiu enviar mais dois de seus elementos para a embaixada do Brasil aqui –
além do adido militar, coronel Câmara Sena.
Um deles é um funcionário de
carreira de alto nível do ministério das Relações Exteriores do Brasil, Manoel
Pio Correa, que virá como embaixador; o outro é Lyle Fontoura, protegido de Pio
Correa, que será o novo primeiro-secretário.
Até o mês passado, Pio era
embaixador do Brasil no México, onde, de acordo com o currículo enviado pela
base [da CIA] do Rio, demonstrou muita eficiência nas tarefas operacionais para
a base [da CIA] da Cidade do México.
Contudo, como o México não reconheceu o
novo governo militar do Brasil, Pio foi chamado de volta ao seu país e a base
[da CIA] do Rio de Janeiro providenciou para que fosse nomeado para Montevidéu,
que no momento é o ponto em ebulição da diplomacia brasileira.
Assim que
chegarem os novos elementos do corpo diplomático, Holman [Ned. P., chefe da CIA
em Montevidéu] entrará em contato com Pio, enquanto O’Grady [Gerald, subchefe
da CIA] se encarregará de entrevistar-se com Fontoura. De uma forma ou de
outra, a base [da CIA] do Rio está decidida a elaborar operações contra os
exilados, e – ao que parece – Pio é o homem indicado, pois tem perseverança suficiente para manter as pressões sobre o governo uruguaio.
Com a mão pesada da CIA,
Pio Correa foi premiado pelo governo Castelo Branco justamente com a embaixada
em Montevidéu, onde se concentravam os inimigos que acompanharam João Goulart e
Leonel Brizola ao exílio.
Lá, o agente duplo da CIA Pio Correa, com o braço
forte do adido militar, o coronel Câmara Senna, outro serviçal da agência
americana, começou a montar o seu CIEx, formado inicialmente por uma rede de
contatos que incluía políticos, militares, juízes, delegados de polícia,
fazendeiros e comerciantes que fechavam o cerco sobre as atividades de Jango e
Brizola no Uruguai.
A bem sucedida experiência
uruguaia o levou, como secretário executivo do chanceler Juracy Magalhães, a
redigir e assinar a portaria ultrassecreta que criou o CIEx no governo Castelo
Branco.
Tão secreta que nem constava da estrutura formal do pudico Itamaraty.
A
existência do CIEx só seria confirmada em 2007, exatamente quando Amorim era o
chanceler do segundo governo Lula.
A constrangedora revelação coube à
monumental série de reportagens produzida pelo repórter Cláudio Dantas
Sequeira, do Correio Braziliense, revelando a ação repressiva da primeira
agência criada sob o amparo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de seu
criador, o general Golbery do Couto e Silva.
O repórter descobriu que,
no início, o secreto CIEx foi camuflado como Assessoria de Documentação de
Política Exterior, ou simplesmente ADOC, com verba secreta e subordinado à
Secretaria Geral de Relações Exteriores.
Dos primeiros anos da ditadura até
1975, funcionou dissimulado como seu criador na sala 410 do quarto andar do
“Bolo de Noiva”, o Anexo I do Palácio do Itamaraty, em Brasília.
Desmontado com
a ditadura em 1985, o lugar hoje abriga a inofensiva Divisão de Promoção do
Audiovisual.
Vasculhando 20 mil páginas de documentos com 8 mil informes
escondidos nos arquivos do CIEx, o repórter Sequeira apurou que, dos 380
brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, os nomes de 64 das
vítimas estavam lá, nas pastas secretas de Pio Correa.
Atuando em linha com os
adidos militares das embaixadas, a tropa civil dos adidos do CIEx de Pio Correa
foi decisiva na atuação do Brasil na Operação Condor, o Mercosul da repressão
que caçava e matava sob o mando e desmando dos generais do Cone Sul do
continente.
Proposta indecente
Como chefe dos diplomatas,
Amorim não lembrou de pedir desculpas pelo CIEx.
Como chefe dos militares,
Amorim chegou a pensar em um pedido de desculpas dos generais pelos 21 anos de
ditadura.
Foi o que ele fez em 18 de fevereiro passado, em seu gabinete no
Ministério da Defesa, em Brasília, na audiência que concedeu aos seis
comissários da Comissão Nacional da Verdade.
O ministro se remexeu na cadeira,
surpreso e incomodado com a entrega inesperada do requerimento da CNV, listando
sete locais de tortura e morte administrados pelo Exército, Marinha e
Aeronáutica.
Ele reagiu com uma proposta inusitada, que desconcertou os
comissários: ofereceu, em nome dos comandantes das FFAA, um pedido público de
desculpas ao país pelos excessos cometidos em duas décadas de arbítrio.
Em
troca, Amorim pediu à CNV garantias de que não haveria a temida revisão da Lei
de Anistia que a ditadura se autoconcedeu em 1979 no governo Figueiredo, para salvar
a pele e a biografia dos torturadores até hoje impunes.
Os comissários reagiram na
hora, com a altivez devida, rejeitando a proposta indecente de Amorim.
Ela
apenas retrata a preocupação crescente dos quartéis com uma provável
recomendação de impacto no relatório final da CNV, a ser apresentado ao país em
dezembro próximo.
É cada vez mais forte a tendência na CNV para recomendar a
revisão da anistia da ditadura, diante das pesadas evidências e contundentes
provas documentais que se acumulam sobre abusos e violências cometidos pelo
regime arbitrário de 1964.
Aceitar os termos do Ministro da Defesa para o
pedido de desculpas dos generais seria uma indesculpável barganha política que
fere o bom-senso e a ética.
Seria coisa ainda pior, a
transgressão de um mandamento pétreo proclamado pelo mestre maior de Amorim e
seus colegas de carreira:
“Um diplomata não serve a um regime e sim ao seu
país”, ensinou o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio
Branco (1845-1912), o chanceler que atravessou quatro governos da nascente
República, no início do Século 20, e ampliou o Brasil redesenhando suas
fronteiras.
Os generais de hoje devem pedir desculpas à Nação pelos erros
cometidos pelos generais de ontem como um imperativo ético que demarca fronteiras
morais e faz uma justa e sanitária separação entre o Exército da democracia, a
que eles servem, e o Exército da ditadura, que eles deveriam repudiar para
preservar a honra e a imagem histórica da corporação.
Amorim esqueceu de se
desculpar na GloboNews pelo desonroso CIEx.
Não recordou da ideia de um pedido
de desculpas dos generais ao país.
E, distraído, não lembrou da ficha da
repórter que o entrevistava no seu gabinete.
O ministro da Defesa, até pela
autoridade do cargo, conhece os detalhes da biografia de Míriam Leitão que o
Brasil desconhece.
Amorim esqueceu que era entrevistado por uma sobrevivente da
ditadura e das torturas que os generais sob seu comando agora negam, como
negaram as torturas no DOI-CODI onde padeceu a guerrilheira da VAR-Palmares
Dilma Rousseff.
O “doutor” e a jibóia
Míriam não integrava a
luta armada, como Dilma.
Nos idos de 1972, aos 19 anos, Míriam era uma
militante da base estudantil do então clandestino PCdoB, que tentava derrubar
em Vitória (ES) a mesma ditadura que mantinha Dilma no cárcere, em São Paulo
(SP).
“A gente apenas pichava muros, espalhava cartazes nos pontos de ônibus e
nas cabines de orelhões.
Lembro que um dia pichei ‘Viva a guerrilha do sul do
Pará!
Abaixo a ditadura!’
Um idealismo de jovens que acreditavam naquilo, que
sabiam que era preciso resistir a tudo aquilo, até mesmo com um simples
panfleto”, lembrou Míriam.
Mineira de Caratinga,
filha de um pastor presbiteriano e de uma professora primária, sexto filho do
casal (depois de três mulheres e dois homens) numa família de 12 irmãos, ela
cursava o primeiro ano de História quando conseguiu um emprego na redação de
uma rádio de Vitória, o que mudaria sua carreira para sempre.
Estreava na
profissão como repórter quando sentiu na carne o peso da repressão, sequestrada
e presa durante três meses, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, no
quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército em Vila Velha, onde foram
encarceradas e torturadas cerca de 40 pessoas – a maioria estudantes da
Universidade Federal do Espírito Santo e um dos professores, o médico Vítor
Buaiz, que fundou o PT, elegeu-se prefeito de Vitória em 1989 e sagrou-se
governador do Estado em 1994.
Na primeira parte do livro
Brasil: Nunca Mais, dedicado a “Castigo Cruel, Desumano e Degradante”, o
Capítulo 2 fala sobre “Modos e instrumentos de tortura”.
Na página 39 do
trabalho, um resumo do projeto original em 12 volumes escrito por Ricardo
Kotscho e Frei Betto, existem oito depoimentos de presos políticos torturados
sob a rubrica “Insetos e Animais”.
O quarto depoimento,
registrado no livro nº 674, volume 3, páginas 782v-783 do projeto Brasil: Nunca
Mais, é a transcrição parcial do auto de qualificação e interrogatório de uma
jornalista, então com 20 anos, chamada Míriam de Almeida Leitão Netto.
Suas
palavras:
[…] que, apesar de estar grávida
na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores […] ficou vários dias sem
qualquer alimentação;
[…] que as pessoas que
procediam o interrogatórios, soltavam cães e cobras para cima da interrogada;
[…]
No livro de Kotscho e
Betto havia outro depoimento, de um auxiliar de escritório de 31 anos, Dalton
Godinho Pires, que em 1973, no volume 5 do livro n° 75, página 1224, revelou no
seu interrogatório:
[…] havia também, em seu
cubículo, a lhe fazer companhia, uma jiboia de nome Míriam […]
Não era uma piada.
Era uma
jiboia mesmo, um exemplar da boa constrictor,a segunda maior cobra do Brasil
(só menor que a sucuri), que mede em média três metros de comprimento.
O autor
deste artigo lembrou desses dados e entrou em contato com Míriam Leitão para esclarecer
melhor sua dramática passagem pelo quartel do Exército na praia de Piratininga,
no bairro Prainha de Vila Velha, 12 quilômetros ao sul da capital capixaba.
Míriam me contou:
“Fiquei presa ali, no 38º
Batalhão.
Os torturadores vieram de fora e, depois, sumiram.
Eles trouxeram a
cobra.
Eu lembro que chamavam o pior dos torturadores, o dono da cobra, de Dr.
Pablo.”
Dr. Pablo era o codinome
de um dos mais truculentos oficiais do DOCI-CODI do II Exército, na Rua Barão
de Mesquita, no bairro carioca da Tijuca: Paulo Malhães, coronel do Centro de
Informações do Exército (CIE).
Em março passado Malhães deu um aterrador
depoimento à Comissão Nacional da Verdade, numa sessão no Rio com a presença da
imprensa.
Ali confessou ter arrancado as arcadas dentárias e cortado os dedos
de presos mortos sob tortura para não permitir a identificação dos corpos
desaparecidos.
Um mês depois da confissão, Malhães foi encontrado morto em seu
sítio, na Baixada Fluminense, aparentemente vítima de infarto após ter a casa
invadida por três bandidos, que fugiram dali levando, entre outros artigos
bizarros para um ladrão, três pastas de documentos e o disco rígido de um dos
dois computadores do coronel.
Dois anos antes, em junho
de 2012, Malhães confirmou ser o dono da Míriam, a cobra que deslizou pela cela
da aterrorizada Míriam no batalhão do Exército em Vila Velha.
O coronel do CIE
contou aos repórteres de O Globo Chico Otávio, Juliana del Piva e Marcelo
Remígio que, na primeira metade da década de 1970, levou cinco filhotes de jacaré
e uma jiboia para torturar os presos na carceragem do Pelotão de Investigações
Criminais (PIC) do I Exército, na Barão de Mesquita, sede do DOI-CODI carioca,
onde podem ter morrido 30 presos, segundo estimativas da CNV.
Malhães tinha atuado na
“Casa Azul”, o QG da repressão à guerrilha do Araguaia, instalado na antiga
sede do DNER em Marabá, no sul do Pará.
Ali, segundo levantamento da CNV,
morreram 24 presos, 22 dos quais militantes do PCdoB, o mesmo partido pelo qual
Míriam pichava muros e espalhava panfletos em Vitória antes do encontro
dramático com a Míriam do Dr. Pablo.
O coronel contou aos repórteres de O
Globo:
“Eu estava um dia à beira
de um rio, na região do Araguaia, quando senti a terra tremer.
Descobri que
estava sentado em cima de um ninho com filhotes de jacaré.
Consegui pegar
cinco, que batizei de Pata, Peta, Pita, Pota e Joãozinho.
E ainda peguei uma jiboia
de seis metros, que chamei de Míriam.
Trouxe todos para o DOI-CODI, no Rio.
Os
filhotes de jacaré não mordiam. Só faziam tec-tec com a boca…”
O jornalista mineiro
Dalton Godinho Pires, citado pelo Brasil: Nunca Mais, ficou quatro anos preso,
mas gravou na pele e na memória os 90 dias de terror no PIC da Barão de
Mesquita, graças à Míriam.
Localizado em 2012 pelo repórter Chico Otávio, Pires
lhe contou:
“Eles chegaram com um
isopor enorme, apagaram a luz e ligaram um som altíssimo.
Percebi na hora que
era uma cobra imensa, que eles chamavam de Míriam.
Felizmente, ela não quis
nada comigo.
Mas, irritada com a música, a cobra não parava de se mexer.
O
corpo dela, ao se deslocar, arranhou o meu.
Cheguei a sangrar.
Mas o maior
trauma foi o cheiro que ela exalava, um fedor que custei a esquecer.”
Verso e reverso
Quando leu esta reportagem
dois anos atrás, no jornal em que trabalha, Míriam teve uma longa e privada
crise de choro, ao cruzar na memória de dor o relato de cobras e jacarés da
repartição de terror do coronel Malhães.
“Era muita coincidência. A ninguém eu
disse isso, nem aos meus filhos”, confessou-me ela, sempre refratária a
discutir publicamente o seu drama pessoal.
“Guardo aqui a sensação de que a
minha dor eu mesmo curo.
Não é dela que se trata.
O que é importante é a dor do
país e ela faz certas exigências às instituições. Uma delas é esse
reconhecimento das Forças Armadas de que erraram”.
Com a elegância exigida,
Míriam preservou os limites institucionais de sua entrevista com o Ministro da
Defesa, sem jamais confundir sua história de vida com a vida do país, embora
elas se cruzem e se confundam.
A consciência de que tinha diante de si uma
sobrevivente da ditadura deve explicar o desempenho nervoso de Amorim na
entrevista, ao tentar defender o que ele sabia, de corpo presente, não ser
verdade.
Aos 61 anos, mãe de dois filhos, ambos jornalistas (Vladimir, repórter
da Rede Globo em Brasília, e Matheus, repórter da Folha de S.Paulo na sede do
jornal), e avó de quatro netos, Míriam é hoje uma das mais importantes
profissionais da imprensa brasileira.
Acumula 24 prêmios de jornalismo, a
terceira maior coleção de troféus no ranking nacional do site Jornalistas &
Cia, logo atrás dos campeoníssimos José Hamilton Ribeiro, o mais premiado
repórter brasileiro de todos os tempos, e Eliane Brum.
Em 2005, Míriam tornou-se
a primeira jornalista brasileira a receber o Prêmio Maria Moors Cabot,
patrocinado pela prestigiosa Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia
(EUA), uma das mais importantes do mundo.
Em 2012, Míriam produziu para a
GloboNews um programa especial de 50 minutos, A história inacabada, com um
devastador relato sobre o sequestro, tortura e morte do ex-deputado Rubens
Paiva.
O trabalho lhe deu o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos
Humanos, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Existe uma maneira simples
para definir a qualidade do jornalismo e a essência da conduta profissional de
Míriam Leitão.
Veja e reveja os dois programas que ela conduziu com brilho e
coragem para a GloboNews.
Aquele sobre a história inacabada do desaparecido
Rubens Paiva, este sobre o desempenho do irresoluto Celso Amorim.
O ex-deputado
e o atual ministro são, por razões opostas, o verso e o reverso de um mesmo
país, ainda atolado no medo endêmico e no cinismo contagioso que rebaixa o
debate sobre nosso passado recente.
As perguntas de Míriam e
as respostas de Amorim provam, na telinha da GloboNews, que ainda existem
jibóias que se enroscam na mentira e jacarés que tentam atemorizar a verdade.
O
didático enfrentamento na TV entre a repórter e o ministro deixou claro, para
os que querem ver, quem enfrenta a jiboia e quem instiga os jacarés.
O inferno das duas Míriam:
a jornalista e a jibóia
Três anos atrás, sem
contar nada ao marido e aos filhos, Míriam Leitão fez uma furtiva viagem de
volta ao passado e ao inferno de sua juventude.
Saiu do Rio de Janeiro e
uma hora depois desembarcou em Vitória.
Pegou um carro, atravessou a Terceira
Ponte, que liga a capital à cidade de Vila Velha, do outro lado da baía, e
seguiu em direção a um dos principais pontos turísticos do Estado: o morro da
Penha, uma elevação de 150 metros de onde se admira uma bela paisagem.
No alto
está o velho Convento da Penha, com uma história de 454 anos.
Ao pé do morro
está outro monumento: o Forte de Piratininga, ali plantado em meados do século
16.
Míriam não fazia um
repentino programa de turista.
Era uma dorida viagem interior ao cenário dos
piores momentos que a jornalista passou em sua vida.
“Quando o país começou a
discutir a criação da Comissão da Verdade, por volta de 2011, decidi voltar lá.
Eu quis fazer minha viagem pessoal, um retorno particular à minha história”,
explica Míriam, no emocionado desabafo que faz pela primeira vez, quatro
décadas após o inferno que amargou naquele cenário hoje encantador.
Desde o
final da Primeira Guerra Mundial, o forte lá embaixo abriga um batalhão de
infantaria subordinado ao Comando Militar do Leste (antigo I Exército), no Rio
de Janeiro.
A construção mais antiga, redonda [na foto, no alto à esquerda], é
o prédio histórico da Fortaleza São Francisco Xavier de Piratininga, reformado
no século 17.
Foi ali que a Míriam quase adolescente de 1972, uma menina
grávida de 19 anos, desceu ao submundo da repressão desatinada que marcava o
auge da violência do governo mais truculento da ditadura, o do general Emílio
Garrastazú Médici.
No início do século 20, a
unidade ainda se chamava 3º Batalhão de Caçadores.
Em setembro de 1972, três
meses antes da prisão ali de Míriam Leitão, o lugar mudou de nome, passando a
chamar-se 38º Batalhão de Infantaria.
Entre os 707 processos políticos
vasculhados no Superior Tribunal Militar pelo projeto Brasil: Nunca Mais, seis
deles procedem do único quartel do Exército baseado em solo capixaba, oriundos
do belo forte de Vila Velha.
Neles, constam 46 denúncias de torturas consumadas
no antigo 3º Batalhão de Caçadores.
Outros 13 casos de torturas envolvem o
atual 38º Batalhão de Infantaria.
Todos se referem ao ano de 1972.
Um deles é o
de Míriam.
Foi lá que Míriam
enfrentou a danação de um nome que resumia como ninguém a truculência do
regime: o coronel Paulo Malhães, o temido “Dr. Pablo” do DOI-CODI da Rua Barão
de Mesquita.
Ao ver na TV o velho torturador de 76 anos depondo para a Comissão
da Verdade, cinco meses atrás, Míriam chegou a duvidar que fosse o mesmo e
fogoso oficial de 34 anos e cabeleira negra e farta que comandou seu
interrogatório.
Mas ela recorda bem que os outros militares o chamavam de “Dr.
Pablo”, o codinome que Malhães usava no DOI-CODI.
Existe outra forte
coincidência a confirmar a identidade do doutor com o coronel.
Malhães veio do
Rio trazendo um acessório de tortura que o tornou inconfundível na mitologia da
repressão, pelo inusitado da escolha: uma cobra.
Na verdade, uma jiboia que
Malhães trouxe do Araguaia e casualmente apelidou de Míriam. Talvez para
assustar ainda mais suas vítimas, o coronel dizia que a cobra media seis metros
de comprimento.
Um evidente exagero do “Dr. Pablo”, pois nem Míriam lembra de
uma cobra tão grande.
Jiboia dessa dimensão, com 6 metros e 120 kg de peso, só
foi vista anos atrás no Camboja.
Uma jiboia amazônica como Míriam é mais
modesta, varia entre 2 e 3 metros e tem 50 kg de peso, ainda assim com tamanho
suficiente para intimidar qualquer um.
Durante horas de um dia
assustador a jiboia do “Dr. Pablo” foi a solitária companhia na sala onde
Míriam Leitão esteve trancafiada no quartel.
Quando voltou à vida, libertada
três meses depois, a jovem franzina que só pesava 50 kg tinha perdido 11 kg no
cativeiro, onde chegou com um mês de gravidez.
Para a visita agora a esse
passado de terror, Míriam contou com a ajuda do ex-governador Paulo Hartung,
que conhecia o comandante de 2011 da guarnição e facilitou o acesso da
ex-presa.
“Fui sozinha, não queria ninguém junto comigo.
Era uma jornada só
minha.
Entrei e não precisei que ninguém me mostrasse o caminho.
Era esquisito,
não tenho bom senso de orientação, mas eu conhecia aquele quartel como a palma
da minha mão.
Percebi algumas reformas, paredes que não existem mais, escadas
que mudaram de lugar, salas que foram modificadas.
Não me permitiram ir a
alguns lugares, mas o essencial estava na minha memória”, conta Míriam, hoje,
com o tremor na voz que trai os demônios que assombraram aquele lugar.
Ela
posou para fotos junto à porta da cela onde ficou um tempo, tiradas pelo
motorista que a acompanhava.
E conseguiu voltar à sala grande onde passou a
madrugada de horror com sua homônima jiboia.
“O lugar agora é um anfiteatro,
mas eu fui direto ao ponto onde me mantiveram de pé, nua, durante horas, antes
e durante o tempo em que fiquei com a cobra.
É uma imagem que não sai da minha
cabeça. Ali eu fiz essa foto”, explica, abrindo pela primeira vez seu arquivo
pessoal.
Míriam, em meio a tanto
sofrimento, lembra de um paradoxo que vivia na época:
“Minha cela ficava na
fortaleza.
Quando eu saía de lá à noite e era levada para outro local de
tortura, eu a contornava e passava pela escadaria.
Saía desse belo prédio
circular, às margens da baía – e que hoje, por ironia, o Exército aluga para
festas –, e era levada para a parte nova do quartel onde funcionavam algumas
seções administrativas do quartel.
Olhava aquele lugar lindo, lindo até hoje, o
convento lá em cima, e pensava o quanto nada daquilo fazia sentido.
Era uma
beleza que contrastava com a violência daquele lugar. Eu não conseguia entender
isso.
Não entendia naquela época, não entendo até hoje”, diz Míriam, a voz
embargada pela emoção da memória.
Pela primeira vez, Míriam Leitão conta aqui
como viveu, e sobreviveu, naquele lugar:
post: Marcelo Ferla